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sábado, 28 de novembro de 2009

A cegueira quanto ao valor da obra alheia e a falta de prudência na autocrítica

A história da literatura está repleta de episódios de cegueira crítica quanto à própria obra ou quanto a de outros colegas de Letras.

O caso de Franz Kafka é provavelmente o mais conhecido: ele nomeou seu amigo, Max Brod, como executor testamentário e ordenou-lhe que queimasse todos os seus escritos.

... Felizmente Brod não o obedeceu, ou nunca leríamos O Processo ou o emaranhado - também incompleto - que é América, cujo primeiro capítulo fôra o único fragmento do romance publicado por Kafka - A Metamorfose foi outra obra sua publicada em vida.

A propósito de Henry James, a cegueira crítica sobre si talvez seja a menos divulgada. Washington Square, uma de suas novelas de maior ironia amarga, com um estudo feminino de primeira linha - e um desfecho de fina literatura, foi sempre por ele considerada um trabalho medíocre, "superficial", sem todas as "infra" e "entre" leituras de que James tanto gostava e nas quais se esmerava.

... Washington Square foi mais tarde transposta para o teatro, A Herdeira, e levada ao cinema nos anos de 1950: The Heiress - no Brasil, chamou-se Tarde Demais, com Olivia De Havilland e Montgomery Clift, sempre com boa acolhida de público e de crítica. Cegueira, cegueira...

Outro: anos e anos atrás, numa entrevista à Ziraldo, o poeta João Cabral de Melo Neto declarou não ver todo esse valor - afirmado pelo próprio Ziraldo - em Morte e Vida Severina, o seu poema longo mais celebrado. Julgava que "reescrevera-o muito pouco".

Há também os casos de cegueira quanto ao valor da obra alheia. Quantos desastres...

André Gide não percebeu a grandeza de Marcel Proust; tendo recusado a primeira parte dos originais daquilo que se tornaria o magistral Em Busca do Tempo Perdido - consta que Gide mais tarde reconheceu seu erro.

Virginia Woolf leu - ou tentou ler - Ulisses, de James Joyce, e considerou-o "vulgar, mal escrito". Ela nunca deixou de ser - apesar de supor o contrário às vezes - uma "aristocrata literária", e jamais poderia ver com bons olhos um romance que, mal se inicia, coloca sua personagem às voltas com problemas de constipação de ventre. Muito "vulgar", para ela...

Ernest Hemingway teria dito que Fiódor Dostoiévski escrevia mal; se isto é verdade?! Não morro de amores por Hemingway, ao contrário, porém declarar uma heresia destas parece-me demais até para ele...

... Enfim, quando comecei a ler o pequeno estudo sobre Gustave Flaubert escrito por Henry James, e li este dizendo que Bouvard e Pécuchet não era uma grande obra do romancista francês, tratando-a quase que como um "engano", quando é justo este romance inacabado que me fez admirar Flaubert - e não o festejado Madame Bovary, tive de admitir que até os mestres como Henry James podem errar.

Num artigo seu de quase 20 anos atrás, Joyce Carol Oates chamou os escritores profissionais de "os piores críticos do mundo"; é verdade que, nele, ela só abordou a incapacidade de autocrítica da categoria. Contudo, a cegueira quanto ao valor da obra alheia, dependendo das circunstâncias, pode gerar grande mal. André Gide, como editor, vetou Proust; felizmente este último encontrou editores depois. E se não tivesse achado?!

Para contrabalançar - e animar - existe a história inversa: talentos solitários, desconhecidos, desacreditados, nos quais alguém - outro escritor - acreditou. É sabido o apoio que Ezra Pound deu a James Joyce e T.S. Eliot; o elogio do já consagrado Ralph Waldo Emerson à obra Folhas de Relva, do então desconhecido Walt Whitman. Ou a carta breve porém calorosa de Monteiro Lobato a Bernardo Élis pelo seu primeiro livro, Ermos e Gerais.

... E é bonito lembrar que o aparentemente sisudo Flaubert recebia as visitas de um jovem Guy de Maupassant, lendo seus textos e dando-lhe conselhos; escrevendo-lhe e considerando-o seu discípulo.

Escritores deveriam se esforçar em nome da prudência e em ouvirem vozes estranhas às deles; o nosso modo de escrever não é o único modo de escrever. E, acreditem os escritores, já existe conspiração demais neste mundo contra a literatura.

domingo, 22 de novembro de 2009

Guia de Resistência

Dogmas:

1. Este é um mundo medíocre. Não se engane: existe uma conspiração para transformar cada um de nós numa pessoa medíocre, ou seja, numa pessoa que se conforma ao mundo.

2. Existiram pessoas não medíocres - não medíocre = contestadoras; a Maior delas foi pregada numa cruz; outras foram maltratadas, perseguidas e desvalorizadas em vida - Vincent Van Gogh, Soren Kierkegaard, Friedrich Nietzsche, Mme. Jeanne Guyon, W. A. Mozart, Fernando Pessoa... Os contestadores - contestadores = não medíocres - bem sucedidos são poucos. O mundo não gosta dos que tentam estar acima dele.

3. Fama não é sinônimo de não mediocridade. Pode ocorrer o contrário. Vide o BBB. A fama pode enganar o não medíocre para que, cedendo à vaidade, se torne medíocre.

4. Contestar não é sinônimo de não mediocridade. Existem aqueles que vestem a capa da contestação e ganham muito dinheiro com isto. Observe a pessoa. O discurso dela pode soar contestador, mas... Enfim: observe. Há exceções, é claro.

Imperativo: Resista.

Recomendações:

1. Leia. Leia muito. Não só o que é fácil. Dê preferência aos escritores que viveram há pelo menos 100 anos antes de você. Os contemporâneos estão próximos demais para uma avaliação justa.

2. Veja filmes. Os antigos, em especial. Muito do que é considerado "inovador" ou "inusitado" já foi feito há 40, 50 anos, ou mais.

3. Visite galerias de arte. Museus. Se não for possível, explore outras possibilidades: livros reproduzindo os grandes pintores; sites... Olhe. Estude. Não tenha pressa. Deixe cada tela falar com você.

4. Seja maluco ou maluca: dance sozinho - ou sozinha.

5. Ouça música, a popular e a erudita. Preste atenção aos instrumentos utilizados, às mudanças de ritmo, às letras - quando houver, claro.

6. "Filosofia" significa, na origem, "amor à sabedoria". Reflita sobre isto. Ética e Estética não são luxos: tomar decisões, comportar-se no vendaval diário, e apreciar a Beleza sob as mais variadas formas, são prioridades.

7. Creia em Jesus Cristo, Filho do Deus Vivo. Para conhecê-Lo, vá à fonte - Bíblia. Como diria C. S. Lewis: "esqueça tudo o que você ouviu. Descubra por si mesmo".

8. Procure outras pessoas que ajudem você e a quem você possa ajudar, para que resistam juntas.

domingo, 8 de novembro de 2009

Jonas e o Fariseu - e nós cristãos

Jonas foi um profeta que, encarregado por Deus de ir pregar na ímpia cidade de Nínive, fugiu a isto; acabou na barriga de um grande peixe.

Salvo por Deus, Jonas foi para Nínive, pregou a futura destruição da cidade, e esta se arrependeu da sua pecaminosidade - o que muito desagradou a Jonas, que se recusava a ir a Nínive justo por isto.

No grande momento do capítulo 4, Jonas diz a Deus que sabia que isto aconteceria e por esta razão se negava a pregar - pois a cidade se converteria e Deus os perdoaria.

"(...) Pois sabia que és Deus compassivo e misericordioso, longânimo e grande em benignidade, e que te arrependes do mal", disse Jonas; chegando ao cúmulo de pedir que Deus lhe tirasse a vida.

Sim. Jonas prefere morrer a ver aquele povo pecador perdoado e salvo por Deus.

Absurdo? Chocante?

Na parábola narrada por Jesus em Lucas 18, dois homens vão orar no templo: um, fariseu - seita rigorosíssima do Judaísmo; o outro, publicano - coletor de impostos, classe quase sempre corrupta e em geral desprezada pela gente honesta daquela sociedade.

Enquanto oram, o fariseu gaba-se de suas virtudes diante de Deus; aproveitando para criticar seu companheiro: "pois não sou como esse publicano", disse ele.

O publicano, envergonhado nesse momento em que fala com Deus, nem ergue a cabeça: só suplica por misericórdia para si. Jesus conclui a história dizendo: Digo-lhes que o publicano desceu justificado para a sua casa, e o fariseu, não.

O que há em comum nessas duas histórias - nesses dois personagens, Jonas e o Fariseu?

Jonas era um servo de Deus. Foi rebelde com Ele porque, na sua visão, os ninivitas não mereciam ser salvos - e ele sabia que, arrependendo-se eles, o Deus a quem servia os perdoaria.

O fariseu congratula-se consigo mesmo por ser tão virtuoso. Começa a orar agradecendo a Deus, porém depressa passa ao auto-elogio e à crítica do seu próximo, o publicano.

Nas suas palavras de agradecimento a Deus, o fariseu deixa entrever que sua concepção de Deus é reducionista: ele O vê semelhante a si próprio, valorizando as mesmas coisas e desprezando as mesmas coisas - e pessoas.

Jonas conhece o coração de Deus, por isto sua revolta. O fariseu faz Deus à sua imagem e semelhança.

Qual deles é o pior?

Temos "Jonas" na igreja - cristãos que não querem partilhar o Senhor com os outros; que julgam-se os únicos dignos de Deus - como se o grande mandamento do evangelho não fosse justo o contrário: boas novas para os totalmente indignos.

Temos fariseus também - cristãos que se congratulam por sua frequência aos cultos; por sua fidelidade nos dízimos e ofertas; por sua vida impoluta. Que desprezam o pecador, e que acreditam estar Deus tão contente com eles, fariseus, quanto eles mesmos estão; que acreditam que Deus joga pelas mesmas regras que eles, desprezando outros seres humanos que bem longe se acham da perfeição.

Ao final, resta-me uma última pergunta:

Crente Jonas ou crente fariseu, qual deles você é?

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Da tristeza e outros livros

Eu andava pela rua - chovia - quando me vi pensando na tristeza.

Foi assim: eu estava me lembrando da terrivelmente amada Clarice, e da amizade dela com o Lúcio Cardoso; a quem ela respeitava muito e que parece ter elegido como uma espécie de mentor literário.

A tristeza de Clarice é contagiante. Ela faz parte de um seleto grupo de escritores que fazem da sua dor uma obra de arte; quando em tempo, ei que escrever sobre isto, aqui...

Bom, eu tinha acabado de comprar um volume com duas novelas do Lúcio, lembrando que só li dele Dias Perdidos, que é ótimo, porém triste demais; dei para associar idéias sobre tristeza...

Cardoso escreve muitíssimo bem. Se há defeito na sua escrita, estaria nessa inconfortável, constante tristeza, que atravessa o romance inteiro.

Não é aquela tristeza fácil, de nos fazer chorar rios de lágrimas, aquilo que os críticos chamam - nem sempre com justiça, verdade - "lágrima fácil"; é mais como melancolia - aquela tristeza suave, indefinida, que permanece em nós por muito tempo, quando não passa a residir permanentemente.

Dias Perdidos - o título o denuncia - é triste; terminei a leitura, lembro-me, incomodado; sabia que era bem escrito, mas - vinha o "mas". O "mas" que é protesto contra a tristeza. O protesto pelo que não se quer.

Eu queria ficar só com a parte boa, o fato de que o romance era envolvente, cheio de humanidade; porém mostrou-se impossível separar isto da tristeza: está lá, em cada página, em cada figura humana desenhada pelo autor.

É como se a alma humana e a tristeza andassem tão unidas uma a outra que não se podia distingui-las ou separá-las.

Tentar extrair uma parte; tê-la sem a outra, mutilaria a história: a própria melancolia é uma personagem.

E foi comprando o seu segundo livro - o segundo que pretendo ler - que compreendi que recusar a tristeza da literatura desse escritor era uma maneira de atraiçoá-lo.

Lembrei mais. Lembrei-me de Miranda Grey, a heroína de O Colecionador de Fowles, quando ela diz a certo momento: "recusarmos-nos à tristeza seria atraiçoarmos todos aqueles que estiveram tristes".

É egoísmo; falta de compaixão; cujo significado já revela: ter pesar pela dor alheia. Sentir dor pela dor do outro. Na raiz da palavra há um sentido de 'carregar junto'; pois é isto: carregar a dor do outro = ter compaixão.

O próprio Cristo nos ensina isto, por meio do cristianismo do apóstolo Paulo: "Compartilhai as necessidades dos santos; praticai a hospitalidade... alegrai-vos com os que se alegram e chorai com os que choram" (Rm. 12.13-15).

Assim, se quero ler Cardoso, ou Bandeira, ou outro "triste" - ler aqui no sentido de ler bem, captando o que de melhor há neles, tenho de aceitar a tristeza; correr o risco de entristecer-me junto; não fazê-lo seria uma espécie de traição; e seria ler mal, ou imperfeitamente.

Além disso, a tristeza pode nos ensinar algumas coisas; que há pessoas que sofrem; que talvez haja algo que possamos fazer - sempre há; e uma delas pode ser apenas - e tão importante - sofrer junto. Sentir a tristeza que não é nossa, mas existe.

domingo, 5 de julho de 2009

Poliglotas de nossa própria língua

Essa nossa língua portuguesa é realmente um "show" de preciosidades. Eu tinha acabado de ler uma reportagem antiga, na revista Veja, sobre o embate entre o anterior português e o atual, lusco, sobre o "falar direito", quando toca o interfone.

Do outro lado, uma voz, em melancólico, pedindo; "Sr., tenho passado por muitas dificuldades. O Sr. me daria uma ajuda?"

Ainda sob o influxo da reportagem, fui colhido de surpresa. Sério.

Há tempos não ouvia um português tão culto, com emprego do verbo num modo misto de presente contínuo - a pobreza continuada - e o passado - não só pelo verbo passar, mas pelo emprego da clássica forma composta para "evitar" o uso do gerúndio proscrito na fala culta, tive de deferir o pedido.

Quem sabe, polidamente, na dúvida se eu sou, à essa altura, portador de SPC - síndrome de pobreza cultural. E humildemente o reconheço, posto que a demonstração disto seja o fato de eu não ter encontrado uma outra de nominar, no português culto, o "show".

A lingua é realmente inculta e bela. Não dá para não repetir o poeta. Somos poliglotas de nossa própria língua.

Tenho pena dos vestibulandos, pois na redação que prestam em seu processo de aprovação, eles se obrigam a fazê-lo com o uso do "português culto".

Eles, portanto, têm que saber "falar direito" para "escrever direito".

E, nestas circunstâncias, claro, ficam impedidos de se arriscar no uso melódico de frases que necessitam dos pronomes "tu" e "você".

Se o misturarem num mesmo texto, estão, literalmente, "no sal".

Me vem aquela reclamação de Monteiro Lobato, em suas cartas trocadas com Godofredo Rangel, quando se refere ao maniqueísmo das gramáticas. Nelas, as cartas, ele proclama sua liberdade de falar num linguajar coloquial: "eu não fiscalizo gramaticalmente minhas frases". E sentenciou, "da gramática eu sou a personificação da ignorância".

O fato é que, se Monteiro Lobato fosse prestar um vestibular hoje, estaria sujeito a ser reprovado. Veja o absurdo a que chegamos. Por outro lado, não teríamos a exuberante liberdade que ele distribui à criançada, com suas estórias, a ponto de permitir - com o protesto dos católicos - o batismo de um rinoceronte por uma boneca de pano fazedora de traquinagens, com o exemplo mais contundente da "arbitrariedade do signo", de Saussure.

Se temos um Brasil criativo hoje, muito devemos a Lobato, pois, não escrevendo "direito" - falar talvez o falasse, pois era da área jurídica, ele mais que muitos outros, divulgou a beleza de nossa língua inculta.

Quando ouvi o pedido inusitado do moço ao interfone, logo imaginei que eu talvez tenha lido e aprendido com Lobato. E fiquei logo, também, ansioso para divulgar o meu modo de pensar.

Agora, fico eu, mui agradecido ao insólito rapaz, com minhas indagações sobre o pobre culto ou o culto pobre.

Ôpa! Olhe que riqueza, leitor!!! As palavras mudam de posição e invocam nova idéia.

Tomara - adoro expressões que vêm o português arcaico - que ninguém se apoquente comigo.

Hoje estou influenciado por Lobato. Sem muito gramatiquês. Como ele mesmo disse: "um burro bem arreado de regras será eminente".

terça-feira, 23 de junho de 2009

Celibato e Amor

Os medievais defendiam a idéia de que o celibato era um chamado especial, um chamado para estar aberto, "vago" para Deus.

Pelo fato de não se ter casado, a pessoa cristã solteira estaria mais - ou deveria estar mais - dedicada a Deus.

Na Bíblia, 1 Coríntios 7:32b, o apóstolo Paulo explicita-o: quem não é casado cuida as coisas do Senhor, de como agradar ao Senhor.

Pondo de lado a ênfase medieval, que colocava o celibato num grau superior ao do casamento, a visão do apóstolo parece razoável. Afinal, sem a responsabilidade de marido - ou esposa - e filhos, a pessoa solteira pode, em princípio, se dedicar mais à obra de Deus.

Digo em princípio porque existem cristãos solteiros em condições específicas que impedem ou reduzem a possibilidade de tal dedicação; aqueles que acumulam o encargo de cuidar de pais doentes ou idosos, por exemplo.

Ultimamente ocorreu-me outra maneira de compreender essa passagem bíblica.

Quem não é casado cuida... De como agradar ao Senhor.

Como agradaremos a Deus? Orando mais? Possivelmente. Assumindo funções ou cargos na igreja? A Bíblia diz que uma pessoa é chamada para isso, e capacitada (Romanos 12:6; 1 Coríntios 12:28); embora se diga que o cristão deve buscar dons (1 Coríntios 12:31).

E também é dito que, em funções de grande responsabilidade, convém que o cristão seja casado (1 Timóteo 3:2, 12; Tito 1:6).

Então, é sensato supor que "agradar ao Senhor" nessa passagem referente ao papel dos cristãos solteiros tem de relacionar-se a mais; do que trabalhar na igreja.

Veio à minha cabeça outra possibilidade: a de que agradaremos a Deus fazendo o que Ele nos diz para fazer, com uma abertura maior para fazê-lo do que sendo casados. E o que seria?

Jesus disse-nos: amai-vos uns aos outros. Ele disse que este era o novo mandamento (João 13:34) e o apóstolo João enfatizou-o (1 João 3:11,14,17-18,23; 4:7-21).

É evidente que as pessoas casadas amam; não se trata da capacidade de amar, mas da possibilidade ou abertura para amar: os solteiros podem amar mais. O seu foco terreno - uma só pessoa - não está presente.

O casado tem graus para exercer o dom do amor - marido ou esposa, filhos - e depois os outros. Não é errado que seja assim. Porém a ausência deste foco, deste ponto central - falo de amor a seres humanos - possibilita mais: possibilita amar a muitos, imensamente, ou ilimitadamente.

Possibilita amar a muitos, com os braços bem abertos, sem qualquer receio ou reserva - receio ou reserva que decerto acabariam ocorrendo, em se tratando de uma pessoa casada ou já comprometida.

A idéia, claro, não é nova. O monge Aelred de Rievaulx (século XII) parafraseou João assim: Deus é amizade, e todo aquele que permanece na amizade permanece em Deus (1 João 4:16).

Os perigos nem por isso terminam. Como escreveu C.S. Lewis, o inferno é o único lugar onde estaremos livres dos perigos do amor.

Amar sempre constituirá um perigo, uma ameaça, pois nos expõe ao não-amor, à indiferença, quando não ao ódio. Às vezes, ao amor mais caloroso, vívido, recebemos luvas de pelica e cortesia. É um risco. Acontece. Mas o sentimento, a sensação de vida, de plenitude trazida pelo amor, é sua própria recompensa.

E a não correspondência também nos aproxima de Deus: quando amamos, e não somos amados - ou não tão amados quanto gostaríamos - podemos saber como Deus Se sente, abrindo os braços para um mundo indiferente, para uma igreja com freqüência inóspita e que O trata até com respeito - porém sem paixão.

Para mim tem sido importante recuperar este conceito, do celibato como um chamado para amar mais, já que, como solteiro, venho me deparando com assomos de amor que me parecem suspeitos ou questionáveis, porque não consigo classificá-los.

Não contendo teor sexual, são, ainda assim, perturbadores, até que lembrar-me de Aereld, celibato e amor, chamado, ajudou-me a pôr as coisas em perspectiva: se amo, não faz sentido etiquetar o que sinto numa categoria pré-concebida. Não é importante. O importante é: eu amo.

E posso amar - estar aberto a isso, quer este amor se encaixe nos moldes que já conheço, quer não.

Os corolários dele - a preocupação com a pessoa, as orações por ela, a alegria de encontrá-la, o desejo de que ela realize os próprios sonhos - aí estão.

Amar e amar apenas. Pode ser uma aventura amar assim. Em momentos isolados, na companhia daqueles que me são queridos, vou descobrindo que é.

sábado, 31 de janeiro de 2009

Da leitura com prazer: chaves para a literatura

livros

Uma chave é um instrumento que utilizamos para abrir algo - uma fechadura, uma porta secreta; é também o princípio. A explicação de problemas ou charadas.

Na literatura, existem obras tão desafiadoras para a compreensão do leitor que o conhecimento de uma chave faz-se necessário. Exemplo claro é Ulisses de James Joyce, em que o próprio romancista fornece um "roteiro-chave" nas folhas finais do romance imenso - uma espécie de decifrador das partes/episódios de que o romance é composto.

Existem chaves gerais, contudo. Ou - poderíamos dizer - chaves parciais. Estas "abrem" as obras até determinado ponto, ou nível, ou ângulo.

Alguns chamam essas chaves de métodos de leitura; outros, de hermenêutica - interpretação; outros ainda, de abordagens para crítica da obra literária. Se o objetivo for uma melhor compreensão, fruição da literatura, nada melhor.

Se, porém, o olhar do leitor se torna o do dissecador, perde-se o prazer - e literatura deve ser prazer. Qualquer instrumento de análise deveria aumentar nosso deleite com a leitura; e, não, secar ou reduzir esse deleite.

Literatura é prazer. O mergulho vertiginoso da leitura é experiência intransferível.

Quando lemos O Processo, relacionamo-nos com a vida de Kafka; quando Os Possessos, com a vida de Dostoievski; Ao Farol e relacionamo-nos com a vida de Virginia Woolf. Há centenas de exemplos para chave autobiográfica.

Na chave estrutural, podemos ler o texto; ao tempo que nos fazendo estas perguntas: Como o romance é organizado / montado? Há excesso de descrições, de diálogos? Como são desenvolvidos? Saco de Ossos de Stephen King e Os Trabalhadores do Mar de Victor Hugo fornecem bom material para a aplicação dessa chave.

Vale ressaltar que estas duas chaves são minhas. O leitor deve criar a sua.

Lendo Guimarães Rosa, por exemplo, o leitor encontra palavras que nunca ouviu falar, uma linguagem criada pelo próprio Guimarães Rosa, mas que é prazeroso descobrir o significado. Esta seria a chave.

Enfim, bem apanhadas todas as chaves, sigamos nessa nossa paixão do texto.

Este é o prazer da literatura. O dito prazer do texto; que pode não ser impeditivo de certa razão da leitura.

O que não podemos é cair no racionalismo que tudo pode e deixar a emoção do texto de lado.

Penso que, em geral, são as obras "antigas" que exigem de nós a descoberta dessas chaves.

Conhecer a época em que foi produzido um determinado trabalho literário, o pensamento sócio-político-cultural, além de outras curiosidades que podem auxiliar na compreensão do leitor.

Quanto mais distinta de nós é a cultura que produziu uma determinada obra, mais difícil será lê-la aproveitando todo o seu potencial - a Divina Comédia de Dante é excelente exemplo.

O desconhecimento dessas coisas "básicas" dificulta, e muito, o prazer da leitura. Afinal, que prazer há em não entender o que se lê?

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Leia poesia!

À minha esquerda, um grupo falava sobre o final da novela 'A Favorita'. À direita, duas pretensas amigas celebravam sua amizade criticando uma terceira que não estava presente.

Pouco atrás de mim, dois sujeitos conversavam sobre fotos de perfis alheios, vistas no Orkut.

Não muito distante, enquanto comprava frutas, uma mulher enumerava para outra uma lista de doenças que soava interminável, com direito a sintomas, nomes e preços dos remédios, o que dissera o médico e quando será a próxima consulta.

À frente, outro grupo discutia sobre A Bolha. Nesta, cheguei a me aproximar - imaginando se tratar do filme de Irvin Shortess Yeaworth Jr., A Bolha, um dos grandes clássicos cults de todos os tempos.

Nada. O assunto discutido era algo em torno do bbb9; Sim, bbb9. Esse lixo massificado e embalado para ser enfiado no seu … Olho.

Já sufocado, olhei para a lua e para as nuvens que já formavam chuva, e o desejo que tive - e o único que eu poderia - foi perguntar bem alto: 'Por que vocês não lêem poesia? Escutem, por que vocês não pegam um bom livro, um romance de preferência, e não se sentam em algum canto para ler?'

Hoje estou irritado!

Enoja-me que as pessoas se contentem com tão pouco, com um mundo tão estreitinho, tão miudinho, medíocre, vil, reles, ordinário. Que possam encontrar prazer ou objetivo em viver assim, dia após dia.

Então, leitores, digo a vocês: Procurem ler poesia. Procurem ler alguma coisa, por favor!

E, por favor, por favor, que não seja o jornal, com suas manchetes escândalosas, tendênciosas, malandras; onde política e economia e mesquinhez imperam, com ares de importância.

Apanhe um bom livro - certas bancas de jornal até vendem alguns - e ponha-se a ler algo de fato relevante, algo que continuará a ter valor dentro de 100, 200, 500 anos ou mais.

Uma (boa) banca de jornais pode vender Shakespeare (Hamlet, Romeu e Julieta), Pablo Neruda (Cem sonetos de amor), Esopo (Fábulas), Omar Khayyam (Rubaiyat), Daniel Defoe (Robinson Crusoe, Contos de Fantasmas), Edgar Allan Poe (Histórias Extraordinárias), Conan Doyle (O cão dos Baskervilles)... Nenhum dos quais é perda de tempo, ao contrário: ler significa expandir o tempo - porque expande nossa mente.

Ao invés de deter-se falando bobagem, de desperdiçar tempo lendo bobagem, faça a si mesmo esse favor: Leia poesia! Povoe-se de versos, leia em voz alta (no banheiro mesmo, se faltar opção. Não tem problema! )

Gotas de Drummond, goles de Álvares de Azevedo, alguns litros de Bandeira, quem sabe quanto de Fernando Pessoa. Embebeda-te, leitor!

Sinta os versos rolarem, passarem por sua boca - deslizando e escorrendo pelos lábios.

O amor, quando se revela,/ Não se sabe revelar/ Sabe bem olhar p'ra ela/ Mas não lhe sabe falar...

Ou ainda: Uns tomam éter, outros cocaína./ Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria...

E também: Gastei uma hora pensando num verso/ que a pena não quer escrever. / No entanto, ele está cá dentro, inquieto e vivo...

Quem se inunda de tudo isso não poderá e não agüentará ser medíocre, limitado, banal. Quem se alimenta disso, amplia o mundo dentro de si, mundo que passa a carregar consigo. O mundo dentro de nós é que é real, porque é ele, em última análise, que nos dá o poder de enfrentar o mundo fora de nós com esperança, com amor, e com coragem.

O mundo dentro de nós é dádiva divina, Graça comum aos que crêem e aos incrédulos.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Pela necessidade do outro: Fazes-me falta, de Inês Pedrosa

De Nietzsche a Gabriel Garcia Marquez, o amor tem sido um assunto que, por mais discutido, ainda permeia de dúvidas os seres humanos.Um assunto esmiuçado até a exaustão, em todas as suas vertentes; desde denominações gregas - philia, Eros, storgé, ágape - até a peculiar frase de Inês Pedrosa: "O amor é coisa séria demais para ficar na mão de amantes", no belíssimo livro merecedor deste post: Fazes-me falta.

Fazes-me falta é daquele tipo de livro que - assim como O Amor nos Tempos do Cólera, covardemente lido - materializa as conversas que eu tive com ela, a história que eu vivi com ela, as discussões que tivemos e a milagrosa identidade.

Livro violentamente belo, cada mísera palavra escrita ali é de uma beleza sem precedentes.

É difícil falar de Fazes-me falta sem ter vontade de chorar. Um livro longe do lugar comum. Denso. De uma verdade doída.

De todos os tipos de amor que conhecemos, Inês Pedrosa divaga a respeito de uma amizade-amor que luta para não cair no esquecimento, para não morrer, para não ser corrompida, para não se tornar mais um amor banal.

É a história de um homem e de uma mulher unidos por um sentimento que está no limiar da amizade, mas, quando ela morre, muitas coisas ainda precisavam ser ditas - e são - através de um diálogo maravilhosamente planejado pela autora.

O livro é lindo!

Cada página tem uma declaração mais apaixonada de um casal que só reconhece que o que sentiam era amor no instante mais inconveniente de todos, quando um deles já se encontra morto.

Fazes-me falta não é um livro que nos faz sentir a ansiedade de chegar ao fim. Não é um livro de soluções ou de resultados. É um livro para se ler. Um livro para se beber sentimentos.

A obra fala de um amor que - mesmo sendo recalcado e escondido no mais profundo que há em nós - em longo prazo, provoca danos irreparáveis.

A história em si, não é das mais sedutoras, mas a forma como esta escrita, num sentido quase poético, envolve-nos e é como se nos sentíssemos abraçados pelas palavras.

Estas são escritas e encaixadas em um contexto maior, e não como um frango sendo aberto e desossado, quebrado em fragmentos, sem um sentido linear.

Uma frase que li numa das suas páginas, intrigou-me profundamente: “... Como consigo matar a tua morte?..."

Ao tratar o amor, Inês Pedrosa nos presenteia com um romance de grande intensidade poética – e humana, mesmo que imortal. Cada palavra exprime da melhor maneira aquilo que sentimos todos os dias.

Palavras cheias de razão. Cheias de verdade. Cheias de honestidade. Onde, no fim fica a decepção: o quê? Já acabou?!

Ao longo das paginas é nos dado a conhecer o sofrimento e a revolta que a doença provoca. O querer morrer e não ter forças para lutar contra isso.

A personagem (que nunca sabemos qual é o seu nome) tem de ir ao passado tentar encontrar em que parte da vida se perdeu de si mesma, em que parte perdeu o amor próprio e acima de tudo vai ter de aprender a amar-se de novo.

Aconselho este livro. É forte. Abana por dentro.

Eu pelo menos me revi em tantas situações descritas e aproveitei para lavar a alma!

Ao mesmo tempo em que todo o texto é angustiante, também é lírico, realista, de uma compreensão incrível dos relacionamentos.

Livro de impecável escrita, envolvimento certeiro. Leia-o ou te fará falta.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

O amor nos tempos do cólera

Quem nunca escreveu cartas de amor que acabaram nunca sendo enviadas?

Quem nunca sentiu o aperto de ser fria e obstinadamente ignorado justamente pela pessoa por quem vertemos nosso encantamento?

Não sou um cara romântico – aviso logo, mas como me interesso pelo amor e, principalmente, por histórias de amor, não pude evitar o envolvimento quando li a provavelmente mais bela história de amor já contada.

Eu que já estou embevecido pela experiência de estar sendo arrastado pelo desejo do amor pra sempre, forte como o cólera; do amor que não pode dar certo, mas que sobrevive; um amor que vai além das formas, da moral deteriorada e dos paradigmas; senti-me completamente destruído.

Se existe o amor, e este faz algum sentido, certamente está na obra intemporal do escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, O Amor nos Tempos do Cólera.

A obra trata-se de uma bela e quase impossível história de amor profundo. Amor pelo amor, e da vida em nome do amor. É uma história tão impressionante que me enredou desde a primeira página, mal pude me erguer do sofá enquanto lia.

A história é uma verdadeira epopéia sobre as relações humanas: feias e bonitas, brutas e delicadas, enaltecedoras e humilhantes. Ter lido O Amor nos Tempos do Cólera foi como uma obrigação sentimental.

Tudo bem, tudo bem eu confesso: identifiquei-me com Florentino Ariza, e sua obstinação por seu amor Fermina Daza.

Tudo!

Suas serenatas frustradas, suas inúmeras cartas enamoradas, o amor não retribuído, as dores da indiferença, a paixão secreta trancada a sete chaves em seu peito, seu coração fechado e destinado a um único amor, sem se importar com o tempo e com os olhares atravessados da sociedade hipócrita.

Aliás, haverá algo mais provocativo que perceber que o mais belo está em nossa alma?

Ao final do livro, meu coração mirou uma luz no fim do túnel. Pois percebi que o amor simplesmente existe. Multiplica-se, surge, recria, se renova.

Percebi que o amor sempre será o amor. Assim. Simples. Sonhado. Seja nesses dias loucos em que vivemos, onde se confunde sexo com algo tão sublime, ou o amor nos tempos do cólera.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Escritor de palavras

Papel e caneta

Flerto com as palavras, tal qual a borboleta flerta com as flores. Gosto do jeito como cada palavra se beija, formando sons que insistem em fazer meus sentimentos e sensações dançarem juntos, num baile tão estranho quanto os pedaços de história que se eternizam em papel e tinta.

... Em papel-tinta-monitor-teclado-cabeça-pensamento.

As palavras, quando escritas, servem para perpetuar meus momentos. Elas se abrem em flores, para as já comentadas borboletas. E da combinação de algumas letras, eu vou fazendo uma história; vou fazendo uma vida.

As palavras são o que tenho de mais parecido com aqueles olhos que tenho por dentro, e que me vêem sofrer quanto tento, sofregamente, por na tela fria de meu computador tudo aquilo que eu penso; tudo aquilo que eu quero; tudo aquilo que eu sou.

A Clarice que o diga... Dizer o indizível; traduzir uma festa de emoções, sensações e percepções em palavras.

Ah, a Clarice...

Eu, com as palavras, descrevo gestos e atitudes. Essas me fazem perder o fôlego, tatear e esquecer-se do instante anterior.

É como um querer louco, que me inebria os sentidos, desafiando minha razão. É como um encontro, uma ansiedade esperada, uma explosão de emoções. É a palavra, farfalhando textos, sensações e sentimentos.

Ela adentra meu olhar curioso, saliva em minha boca, e consegue, por um instante, tocar o meu sentido – com meus próprios dedos.

O que eu escrevo me é, sempre, comestível. Cada palavra me é sorvida como um bálsamo; banhado pela luz difusa do fim de tarde, que insiste em invadir minhas mãos e pensamentos.

Sem pedir licença, igualzinho você, leitor.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Ultrapassando o campo da delicadeza poética: Florbela Espanca

Fui apresentado à Florbela num momento trágico, e, diante de sua amargura contida, de sua dor tão elegantemente revelada, senti-me de frente a um espelho.

A poesia de Florbela Espanca é de uma beleza sublime; o que me provocou um contentamento dual, pela sua simplicidade na escolha das palavras e pela clareza na transmissão do que lhe era sentido. Carne e alma entraram em regozijo.

Mulher de terrível encanto; seus poemas são extremamente sensíveis, chegando até ao erotismo. Aliás, seu erotismo é de uma espontaneidade e beleza incomparável.

Sinto em seus versos a inquietação de uma alma que não cabe nas limitações do corpo, tampouco nas convenções do mundo. Um corpo que tem sede e desejos que nem ela mesma conseguiu definir ou calcular-lhes a intensidade; que vive num constante delírio por conhecer-se, numa infinita angústia de se ser.

Em explosões de melancolia, os poemas de Florbela suscitam uma propensão para a angústia existencial.

Infelizmente, há um pensamento despótico, sectário e dogmático que se perpetua, que é a teima em rotular a poesia de Florbela Espanca como ‘imoral’. O que acho totalmente errado!

O pai tem uma filha que só perfilha depois de morta, por imposição de seus amantes literários, e a imoral é ela? Francamente...

Como seus poemas, Florbela era intensa. E essa intensidade, mais do que qualquer outro motivo, pode tê-la levado à depressão.

Existe uma versão hipotética de que a causa da melancolia de Florbela era o amor incestuoso pelo irmão; variante a qual não entrarei em detalhes.

Correto é afirma que, em seus poemas, ela descreve a dor que sentia; a agonia; a pressão de um mundo onde ela era avançada para o seu tempo.

O que é de mais admirável em Florbela não está em sua postura diante da sociedade da época. Existiram muitas mulheres como ela naquele tempo - e em outros tempos. O que mais impressiona em Florbela é a qualidade de seus sonetos.

Florbela conflitava em uma busca interior por ela mesma; pela própria essência e de como ela se surpreendia por se achar em si mesma como um ser infinito, complexo e contraditório.

A verdade é que não há nada mais justo do que deixar a própria Florbela falar por si:

“Não tenho nenhum intuito especial ao escrever estas linhas; não viso nenhum objetivo; não tenho em vista nenhum fim. Quando morrer, é possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem o saber dizer, que essa coisa tão rara neste mundo, uma alma, se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silencio, sobre o que eu fui ou o que julguei ser.

E realize o que eu não pude: conhecer-me. ”

sábado, 22 de março de 2008

Vai um cordel aí?

Nordestino orgulhoso que sou, admito que me seja extremamente bom ostentar, neste blog, o mundo do encantamento da quimera; da valentia; do matuto; do cangaço; do religioso; e do que não poderia faltar: o gracejo.

E é com esse mesmo pensamento que coloco a minha vida lado a lado com a sua, leitor, em um mesmo cordão: a LITERATURA DE CORDEL.

Poesia de mestria única, a literatura de cordel traz muito da real importância nordestina. Podendo arrebatar aos nossos corações a esperança do retirante; a estreiteza de um agricultor na seca; o singular do ambiente sertanejo; o poeta como representante do povo; ou, e principalmente, a alegria de ser alguém que enxerga nas próprias mãos calejadas a prova do trabalho honesto que, se muitas vezes não sustenta o corpo, sossega a alma.

O povo atribui a literatura de cordel apenas como folheto, visto que a origem de seu nome de dá pelo fato do mesmo ser vendido em folhetos rústicos, presos por pregadores de roupa, e pendurados em barbantes (cordéis).

Porém, essa atribuição é totalmente equivocada. A literatura de cordel não pode ser explicada apenas como uma poesia narrativa impressa; eis que ela é, acima de tudo, jornalismo POPULAR, onde elementos modernos se misturam a tradicionais.

Então, independente de você ser um bom escritor ou não; nordestino ou não; amante de cordéis ou não; você faz parte do povo, logo, essa arte também é sua.

E se de literatura de cordel estamos falando, não poderei eu deixar de recitar, em voz alta e clara, a forma melodiosa e cadenciada que ela é.

Com vocês, “Ai se Sesse”, do poeta Zé da Luz, por Cordel do Fogo Encantando:

"A gente vem lá do sertão de Pernambuco, cidade chamada Arcoverde. O poeta Zé da Luz, do início do século, escreveu uma poesia, porque disseram pra ele que pra falar de amor era necessário um português correto e tal. Aí Zé da Luz escreveu uma poesia chamada "Ai se Sesse", que diz assim:

Se um dia nós se gostasse
Se um dia nós se queresse
Se nós dois se empareasse
Se juntim nós dois vivesse
Se juntim nós dois morasse
Se juntim nós dois drumisse
Se juntim nós dois morresse
Se pro céu nós assubisse mas porém se acontecesse
DeSão Pedro não abrisse a porta do céu e fosse te dizer qualquer tolice
E se eu me arriminasse
E tu com eu insintisse
Prá que eu me arressôvesse
E a minha faca puxasse
E o bucho do céu furasse
Tarvês que nós dois ficasse
Tarvês que nós dois caísse
E o céu furado arriasse e as virgi todas fugisse..."

segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Ultrapassando o campo da Literatura: Franz Kafka

A obra do escritor tcheco Franz Kafka é tão difundida, e já foi tão dissecada, que dificilmente alguém pega para ler um romance seu sem tomar conhecimento de muito do que já foi dito a respeito.

De Freud a Hannah Arendt, vários pensadores tiveram suas idéias identificadas dentro do peculiar mundo kafkiano, e eu já conhecia algumas dessas interpretações.

Foi portanto com uma intrigante sensação de "já sei o que vou encontrar pela frente" que li O Processo e, posteriormente, A Metamorfose.

No entanto, o principal atrativo do romance estava numa característica sua que ninguém havia mencionado: sua capacidade de transmitir ao leitor o espírito da história não apenas através de pensamentos, mas também de sensações.

A normalidade bucólica da vida de Josef K. pode ser sentida nos primeiros trechos, quando o mesmo não perde a calma mesmo tendo seu quarto revistado por dois estranhos. Toma café, conversa com a senhoria, até flerta com uma vizinha, como se o nebuloso processo do qual é réu nem de longe o tocasse.

Após a primeira visita ao tribunal, o mundo asfixiante daquele tribunal tão hermético e singular vai progressivamente dominando-o, até a queda final, absorvendo todos os seus pensamentos e se instalando em todas as instâncias de sua vida.

Se nos primeiros capítulos são mencionadas relações dele com a senhoria, a vizinha, uma namorada, um amigo promotor, todo esse mundo do qual fazia parte antes do processo desaparece da metade para a frente. E o leitor, paralelamente, sente o amplexo progressivo dessa serpente, que constrange e sufoca progressivamente tanto o protagonista quando o espectador de seu drama.

É impossível não se sentir sufocado a cada corredor estreito, acada saleta escura, a cada reentrância legal em que se enreda Josef, que quanto mais luta para escapar, mais e mais se complica, como a presa que se enreda na teia à medida que se debate com mais e mais ímpeto, enquanto a aranha observa, calma, apenas aguardando o momento de devorá-la.

E tudo se torna ainda mais assustador quando percebemos que não apenas K. é a mosca, mas também nós, os leitores, sentimos as fibras da teia nos apertarem mais e mais, e podemos senti-la tremular enquanto a aranha se aproxima lentamente para tomar o que lhe é de direito.

Aqui fazemos menção à outra obra em análise, A Metamorfose, que possui exatamente a mesma índole: oprimir progressivamente o leitor, fazendo-o sentir-se como Gregor Samsa, mas aqui a perspectiva é um pouco distinta.

Em O Processo, vemos Josef K. perdendo progressivamente sua vida pessoal para ser completamente absorvido pelo drama que vive. Em A Metamorfose, a narrativa começa com a desgraça já consumada. Enquanto K. vê sua vida se perdendo como quem vê a água descer pelo ralo, Gregor contempla aquilo que já perdeu. Embora houvesse a possibilidade de voltar ao normal da mesma forma bizarra e inexplicável como se metamorfoseou, em nenhum momento se retrata essa esperança.

Sua luta, que dura cem páginas, é apenas para continuar a sobreviver naquela situação horrenda, até que finalmente ele, assim como Josef K., se entrega, após tanta luta, com serenidade e sem resistência no momento final, àquela circunstância que se impôs invencível diante dele.

Josef K. e Gregor Samsa, como já mencionado, foram transformados em ícones tanto do complexo de Édipo freudiano (bem como Kafka, cuja relação conflituosa com o pai já rendeu muita psicanálise) como da irracionalidade tirânica do totalitarismo (não há como não comparar o processo movido contra Josef com os famosos "Processos de Moscou").

Não discordo de tais abordagens, mas para mim o que torna Kafka soberbo é a sua habilidade em jogar o leitor na mesma espiral de desespero na qual envolve seus personagens. Se você não sente um aperto na garganta durante as visitas de K.aos órgãos do tribunal ou no parágrafo de sete páginas no qual são expostas as nuances do processo, nem ao imaginar o quarto fechado, escuro e poeirento no qual Gregor rasteja sua condição miserável, Kafka será para você apenas um autor hermético e chato. O que é uma pena, mas...

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Desumano, demasiadamente desumano.

Pensava agora a pouco sobre a existência humana. Mais precisamente sobre a minha existência.

Antes, tinha comigo a imagem da vida como uma epopéia. Possuía crenças, me exigia realizar grandes feitos, onde estaria disposto a sofrer e me sacrificar.

Com o tempo, reparando no mundo que me cerca, na sociedade alienadora, pude perceber que a vida é apenas "uma sala burguesa" onde o cotidiano mais ordinário contenta os seres humanos normais. Mas isso não me contenta!

Sou então 'Dom Quixote'! Necessito do heróico, dos grandes poetas, do belo, do "medíocre", mesmo que isso signifique lutar contra moinhos de ventos.

Desespero-me perante o mundo simples e cômodo de hoje! "Para quem requer música em vez de barulheira, alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, trabalho puro em vez de ativação, paixão pura em vez de brincadeira, este mundo lindíssimo não é pátria..." A dor, a contrariedade, todos esses abalos triviais me fazem pensar em...

Não consigo ver-me sem as lentes simplificadoras e deturpadoras do julgamento. É como se houvesse uma multiplicidade de eus e a cada máscara retirada vejo-me aprofundar na solidão e incompreensão; sinto-me afastar do normal, do aceito pela sociedade.

Então eu não sou normal, assim como minhas crenças, idéias e sonhos não são normais. Como conviver com isso? Como conviver com todas essas faces ou como permanecer com uma apenas? Como ser aceito na sociedade? Mas pra quê ser aceito por ela? Condenei tanto o senso-comum das idéias e será que tudo que busco é aceitá-las, integrar-me à elas? Não, isso não! Jamais!

Mas por que essa necessidade de integrar-me ao mundo? Não seria o mundo que deveria integrar-se à mim? Ou ao menos me aceitar, me compreender...

Não sei o que fazer quando me deparo com essa personalidade multifacetada, nem com tantas idéias contraditórias. Talvez a idéia calada pelo pensamento seja uma solução. Ou, quem sabe, a única solução... Pensar na condição humana é algo demasiado difícil.

Muitos pensaram sobre ela: Nietzsche, Goethe, Freud. Mas eles não conseguiram chegar a meras especulações epistemológicas. Pensar no que nos faz humanos. Mas é mais fácil pensar no que nos faz desumanos (gente, gentalha, populacho!).

Ser humano evoca mais. Como perceber a insustentável leveza da condição humana como disse Tolstoi. Nessa insustentável leveza reside nossas mais caras perspectivas, mais estúpidos erros, limitações, angústias e tudo mais que nos torna demasiadamente humanos.

Mas entre esses "atributos" um me incomoda muito. O medo. Medo de deixar de ser humano e me tornar gente.

Essa corja que povoa a sala burguesa. Não quero ser gente ao ponto de pensar essa grade de pensamento tacanha que serve de suporte para a classificação de tudo e de todos; quero sentir meus sentimentos mas não pelos moldes hipócritas, legado do processo civilizatório, não quero fazer o mesmo discurso frouxo que o social erigiu.

Não quero ser forte por mentir; quero ser forte por contar com minha alma, minha cognição. Não! Eu quero verdades, mesmo que axiomáticas, que se sustentem. Tudo que penso é tão real pra mim mas tão anormal pra os outros. Paradoxal e dialético como todo real pode ser, aliás, só pode ser.

Esses movimentos eternos de tantos paradoxos e dialéticas se misturam naquilo que Goethe chamava de turbilhão da modernidade. Porém, nesse turbilhão eu não vou me transformar em gente.

Lembra dessa passagem que Goethe descreve Fausto observando a gente que seguia a procissão do Cristo morto? Toda a sorte de gente que seguia o "útero podre" da sociedade moderna? É encantador.

Nesse movimento desconexo e ilógico onde se misturam pequenezes, frustrações, vazios e ecos tão ordenadores enquanto elementos constituintes e constituidores do senso comum. Paradoxal e dialético não, Imbecial mesmo!!! Como tudo que eu penso.

Será que é isso: culpa da modernidade? Algo exclusivamente dos nossos "dias modernos"? Se for assim, talvez eu encontre refúgio numa outra dimensão, num lugar situado além da aparência e do tempo. E novamente a solução seria o pensamento calado... Estou confuso sim! Tudo bem, tudo bem! Vou parar de ler aquele maldito livro!

quinta-feira, 29 de setembro de 2005

A minha alma pelo conhecimento

A idéia de que o poder e a riqueza em excesso escravizam, tornam o ambicioso um solitário, está nas origens da existência humana, tanto quanto o conceito de matéria e espírito como incompatíveis e opostos. Ante isso, penso que será interessante trazer a idéia da obra que é símbolo da insatisfação e da inconstância humana.

Falo de “Fausto” de J.W. von Goethe. Quanto tomei a leitura de "Fausto", através da obra de Goethe, meu espírito idealista identificou-se com o espírito pré-romântico da visão goethiana. Fausto é o próprio espelho da humanidade inteira.

A obra nos toca por que fala da gente. Há uma relação bastante estreita entre as ambições de Fausto e as nossas. Mesmo que muitos digam que não, todos querem sempre através das mais diversas habilidades sublimar-se à mera condição humana.

A condição de sermos finitos e imperfeitos não nos satisfaz, então tentamos superá-la, imitando o ato divino ao representar ou recriar o mundo e nossa existência. Nem que para isso tenhamos que, como Fausto, negociar a alma.

Fascinante e envolvente, a obra mostra de maneira genial o quanto é do homem querer superar seus limites. A busca pela juventude, poder, sabedoria, as relações entre o humano e o divino.

A conquista de tudo isso através do pacto com o demônio. Mefistófeles, o diabo na obra, simboliza o mistério da existência, a lucidez, a revelação que conduz à sabedoria, um desejo quimérico de eternidade, ainda que o preço a pagar seja o da própria danação. Para mim, como todos nós, Fausto é entediado de si mesmo.

Cansado de sua existência, Fausto negocia sua alma mediante a obtenção de um estado de plenitude e satisfação perene.

Fausto representa o homem na sua incessante, angustiada e inatingível busca pelo conhecimento universal e absoluto que a todo o momento nos lembra e nos humilha perante as maravilhas do Universo, mas também sugere em nós a possibilidade de atingí-los ou desvendá-los. Pois, a danação humana não se restringe apenas num castigo superior por infringirmos regras morais, religiosas ou divinas, mas sim, pela conseqüência do livre-arbítrio.

A angustia de Fausto é também nossa angustia, pois ao tentarmos explicar tudo pelos meios que temos, tais como ciência e razão, perdemos o contato com o divino. E por nunca se achar resposta, passa-se a não acreditar mais que se possa realmente entender e, adquirindo esse pensamento, vive-se para o prazer, o poder, o dinheiro.

A grandiosidade dessa obra é fascinante, visualizo nela, o quanto o homem vivencia essa insatisfação consigo mesmo que o faz buscar um sentido, um valor, tornando-se capaz das maiores atrocidades com o próximo e consigo mesmo, negociando o único objeto apreciável para esse tipo de negociação: a alma.