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sexta-feira, 31 de julho de 2009

Da tristeza e outros livros

Eu andava pela rua - chovia - quando me vi pensando na tristeza.

Foi assim: eu estava me lembrando da terrivelmente amada Clarice, e da amizade dela com o Lúcio Cardoso; a quem ela respeitava muito e que parece ter elegido como uma espécie de mentor literário.

A tristeza de Clarice é contagiante. Ela faz parte de um seleto grupo de escritores que fazem da sua dor uma obra de arte; quando em tempo, ei que escrever sobre isto, aqui...

Bom, eu tinha acabado de comprar um volume com duas novelas do Lúcio, lembrando que só li dele Dias Perdidos, que é ótimo, porém triste demais; dei para associar idéias sobre tristeza...

Cardoso escreve muitíssimo bem. Se há defeito na sua escrita, estaria nessa inconfortável, constante tristeza, que atravessa o romance inteiro.

Não é aquela tristeza fácil, de nos fazer chorar rios de lágrimas, aquilo que os críticos chamam - nem sempre com justiça, verdade - "lágrima fácil"; é mais como melancolia - aquela tristeza suave, indefinida, que permanece em nós por muito tempo, quando não passa a residir permanentemente.

Dias Perdidos - o título o denuncia - é triste; terminei a leitura, lembro-me, incomodado; sabia que era bem escrito, mas - vinha o "mas". O "mas" que é protesto contra a tristeza. O protesto pelo que não se quer.

Eu queria ficar só com a parte boa, o fato de que o romance era envolvente, cheio de humanidade; porém mostrou-se impossível separar isto da tristeza: está lá, em cada página, em cada figura humana desenhada pelo autor.

É como se a alma humana e a tristeza andassem tão unidas uma a outra que não se podia distingui-las ou separá-las.

Tentar extrair uma parte; tê-la sem a outra, mutilaria a história: a própria melancolia é uma personagem.

E foi comprando o seu segundo livro - o segundo que pretendo ler - que compreendi que recusar a tristeza da literatura desse escritor era uma maneira de atraiçoá-lo.

Lembrei mais. Lembrei-me de Miranda Grey, a heroína de O Colecionador de Fowles, quando ela diz a certo momento: "recusarmos-nos à tristeza seria atraiçoarmos todos aqueles que estiveram tristes".

É egoísmo; falta de compaixão; cujo significado já revela: ter pesar pela dor alheia. Sentir dor pela dor do outro. Na raiz da palavra há um sentido de 'carregar junto'; pois é isto: carregar a dor do outro = ter compaixão.

O próprio Cristo nos ensina isto, por meio do cristianismo do apóstolo Paulo: "Compartilhai as necessidades dos santos; praticai a hospitalidade... alegrai-vos com os que se alegram e chorai com os que choram" (Rm. 12.13-15).

Assim, se quero ler Cardoso, ou Bandeira, ou outro "triste" - ler aqui no sentido de ler bem, captando o que de melhor há neles, tenho de aceitar a tristeza; correr o risco de entristecer-me junto; não fazê-lo seria uma espécie de traição; e seria ler mal, ou imperfeitamente.

Além disso, a tristeza pode nos ensinar algumas coisas; que há pessoas que sofrem; que talvez haja algo que possamos fazer - sempre há; e uma delas pode ser apenas - e tão importante - sofrer junto. Sentir a tristeza que não é nossa, mas existe.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

A saudade e a falta que se sente

Saudade

Sempre ouvi dizer que a palavra saudade não possui equivalente em outras línguas...

Talvez não tenha definição, nem entendimento, daí a dificuldade de tradução.

Para mim, torna-se difícil definir, ou fazer com que entendam o que eu sinto quando digo: "tenho saudades…"

Na verdade, nem eu sei muito bem o que são saudades… Saudades daquele tempo, saudades de alguém que partiu, saudades de alguém que não chega, saudades da comida da avó…

Conseguimos dizer que temos saudades de tudo e mais alguma coisa, inclusive, de cheiros, sabores, paisagens, momentos, toques…

Depois, existem outras palavras, como nostalgia, saudosismo, melancolia, que tem uma carga de saudade, mas é uma sensação de profunda tristeza. Nem sempre sinto esta tristeza; algumas sensações fazem-me rir.

E aquelas saudades que nos perseguem? Aquelas que não queremos sentir, mas sentimos; aquelas que quanto mais queremos esquecer, mais se lembram de nós?! Aquelas saudades irritantes!?

Aquelas que já nem são saudades, são um género de beliscão na carne, são aquelas que parecem um estalo na cara?! ... soco no estômago, como disse a Clarice.

São aquelas saudades que gritam "sinto a tua falta". Aquelas saudades que se entranham em nós; acordamos com elas, deitamo-nos com elas... E ficamos fartos, cheio delas.

Decerto, sentir saudades não é o mesmo que sentir a falta. Sentir a falta de alguém é mais doloroso. Penso.

Sentir a falta dói, deixa marca, acutila a alma, sufoca, desespera, desorienta, rouba-nos o suspiro...

E quando a saudade aparece o momento em que temos oportunidade de matá-la? Creio que nem sempre se conseguem matar as saudades todas.

Fica sempre alguma coisa no peito; nem o abraço mais profundo consegue matar a saudade.

Parecendo que se consegue, é porque afinal não eram saudades - ou eram??

E no meio deste rodopio desentendido do que é a saudade, já não sei se sinto saudades, se sinto a falta… Sei que sinto um vazio que antes não existia em mim.

... Saudades do que ainda não tive; ou como disse a Florbela: "uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade… Sei lá de quê!"

Definitivamente, o que não gosto é ter de ser eu a matar as minhas próprias saudades.

Matar saudades que já não fazem sentido, matar saudades que são só minhas.

Destruir saudades, apagar memórias, querer esquecer, é um processo de autodestruição consciente e doloroso, afagado em lágrimas sem sal...

Não há tempo certo para sentir, ou deixar de sentir saudades. Infelizmente não se controla isso. Mas as saudades que são só minhas, ficarão em segredo, ficarão só para mim, ficarão num sufocado silêncio que grita "sinto a tua falta".

E este é um grito mudo, ao ouvido de um surdo, que ainda por cima é cego!

Grito em silêncio, na esperança que eu ainda tenha tacto, e perceba isto durante um abraço...

sábado, 25 de julho de 2009

Da não-leitura: a cultura do verniz

Mergulhe de cabeça da leitura

Comecei a ler O Cânone Ocidental, de Harold Bloom. O subtítulo é expressivo: "Os livros e a escola do tempo". Grande verdade.

Vivemos numa época pretensiosa. Em toda parte, pretensos intelectuais apresentam afirmações questionáveis - sobre religião, sobre literatura, sobre filosofia, cinema, arte - que poucos refutam.

É fácil explicar o porquê. Nossa época é também uma época ignorante; mas como, pretensão e ignorância juntas?

Se parece esquisito, basta nos lembramos que as pessoas verdadeiramente cultas são humildes. Elas sempre estão dispostas a aprender. Elas percebem, continuamente, o quanto ainda há para aprender, por mais que se instruam.

... Só os pouco instruídos são arrogantes.

Não estou falando das pessoas com nenhuma ou pouca instrução formal. Falo das que aprenderam um pouco mais, talvez adquirindo inclusive algum ou alguns diplomas, e julgam-se, já, prontas para tudo. Capacitadas a dar seu veredito sobre tudo.

O espírito do que costumo chamar "ouvir o galo cantar e não saber aonde" é a tônica do nosso tempo.

Um livro - falo do que conheço melhor, e amo - é lançado como 'polêmico', uma 'obra madura e sensível' e muitos correm para comprar - nem sempre leem, mas compram.

Logo alguém - um crítico - lê e diz que é uma obra de arte. E todos que compraram, ainda que sem ler, concordam.

Concordo que gosto não se discute. É gosto, e pronto. Nada a declarar. Porém, escrever resenhas profissionais, lecionar em escolas - duas atividades que ajudam a moldar ou aprimorar gostos no sentido crítico do termo - repetindo modismos, sem qualquer análise, é uma impostura.

Existe um instrumental para estabelecer critérios literários. Perfeito? Não. Um instrumental indispensável, contudo.

Ler. Ler. Ler muito. Ler os grandes. Ler os clássicos. Ler aqueles que resistiram ao teste do tempo.

Somos facilmente enganados por qualquer charlatão das letras que se apresente escrevendo ficção, poesia, ou obras 'revolucionárias' quando desconhecemos o passado, aquilo que já foi feito antes.

Podem plagiar para nós toda uma cena de Henrique IV, de Shakespeare, e ninguém perceberá. Ou muito poucos.

É verdade que nem sempre temos acesso às fontes que nos permitem esse conhecimento. Ainda assim, boa parte - não toda que deveria, mas boa parte - dos clássicos e de outros instrumentais críticos está à nossa disposição.

O maior problema para nossa ignorância, penso, não se encontra aí; encontra-se em nós mesmos.

A ignorância frequentemente é preguiçosa. Isso também nada teria de mais - ninguém é obrigado a ler o que não quer - se não estivesse aliada à pretensão.

Porque, se quero ditar padrões aos outros, se quero emitir opiniões como crítica séria, tenho de mourejar. E ler os clássicos; os pioneiros; os precursores. Os que vieram antes de mim, porque terem vivido em outra época em que não havia internet não significa que fossem burros ou simplistas.

Cada época parece pensar que a sua é a única época desenvolvida, culta, avançada etc. Avançada tecnologicamente a nossa o é. Mais do que qualquer outra antes de nós. Quanto à cultura, discutível.

Temos oportunidades hoje que nossos avós nunca tiveram; raros os que as aproveitam. Preferimos a ignorância, ou melhor, o 'verniz' de cultura ou instrução. E nos julgamos muito inteligentes por isso.

Há uma frase atribuída a Sócrates - Só sei que nada sei - que me parece divisora de águas, aqui. Se podemos endossá-la, então, penso, estamos dizendo que ainda não sabemos muito; que nosso empenho em crescer, em aprender, gera maior humildade.

E não nos arvoraremos em juízes para dizer que ler o passado é perda de tempo, ou que ler o presente é suficiente. Sejamos humildes.

domingo, 5 de julho de 2009

Poliglotas de nossa própria língua

Essa nossa língua portuguesa é realmente um "show" de preciosidades. Eu tinha acabado de ler uma reportagem antiga, na revista Veja, sobre o embate entre o anterior português e o atual, lusco, sobre o "falar direito", quando toca o interfone.

Do outro lado, uma voz, em melancólico, pedindo; "Sr., tenho passado por muitas dificuldades. O Sr. me daria uma ajuda?"

Ainda sob o influxo da reportagem, fui colhido de surpresa. Sério.

Há tempos não ouvia um português tão culto, com emprego do verbo num modo misto de presente contínuo - a pobreza continuada - e o passado - não só pelo verbo passar, mas pelo emprego da clássica forma composta para "evitar" o uso do gerúndio proscrito na fala culta, tive de deferir o pedido.

Quem sabe, polidamente, na dúvida se eu sou, à essa altura, portador de SPC - síndrome de pobreza cultural. E humildemente o reconheço, posto que a demonstração disto seja o fato de eu não ter encontrado uma outra de nominar, no português culto, o "show".

A lingua é realmente inculta e bela. Não dá para não repetir o poeta. Somos poliglotas de nossa própria língua.

Tenho pena dos vestibulandos, pois na redação que prestam em seu processo de aprovação, eles se obrigam a fazê-lo com o uso do "português culto".

Eles, portanto, têm que saber "falar direito" para "escrever direito".

E, nestas circunstâncias, claro, ficam impedidos de se arriscar no uso melódico de frases que necessitam dos pronomes "tu" e "você".

Se o misturarem num mesmo texto, estão, literalmente, "no sal".

Me vem aquela reclamação de Monteiro Lobato, em suas cartas trocadas com Godofredo Rangel, quando se refere ao maniqueísmo das gramáticas. Nelas, as cartas, ele proclama sua liberdade de falar num linguajar coloquial: "eu não fiscalizo gramaticalmente minhas frases". E sentenciou, "da gramática eu sou a personificação da ignorância".

O fato é que, se Monteiro Lobato fosse prestar um vestibular hoje, estaria sujeito a ser reprovado. Veja o absurdo a que chegamos. Por outro lado, não teríamos a exuberante liberdade que ele distribui à criançada, com suas estórias, a ponto de permitir - com o protesto dos católicos - o batismo de um rinoceronte por uma boneca de pano fazedora de traquinagens, com o exemplo mais contundente da "arbitrariedade do signo", de Saussure.

Se temos um Brasil criativo hoje, muito devemos a Lobato, pois, não escrevendo "direito" - falar talvez o falasse, pois era da área jurídica, ele mais que muitos outros, divulgou a beleza de nossa língua inculta.

Quando ouvi o pedido inusitado do moço ao interfone, logo imaginei que eu talvez tenha lido e aprendido com Lobato. E fiquei logo, também, ansioso para divulgar o meu modo de pensar.

Agora, fico eu, mui agradecido ao insólito rapaz, com minhas indagações sobre o pobre culto ou o culto pobre.

Ôpa! Olhe que riqueza, leitor!!! As palavras mudam de posição e invocam nova idéia.

Tomara - adoro expressões que vêm o português arcaico - que ninguém se apoquente comigo.

Hoje estou influenciado por Lobato. Sem muito gramatiquês. Como ele mesmo disse: "um burro bem arreado de regras será eminente".