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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Da amizade


Tema nobre; Aristóteles disse que era "uma única alma habitando dois corpos". Em belíssima obra que leva o nome deste post, Cícero questiona se existe “algo mais belo do que ter alguém com quem se possa falar de todas as coisas como se falasse consigo mesmo”. Voltaire definiu-a como "contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas".
Na mitologia, a história dos gêmeos Castor e Pólux é das mais bonitas. Lutando sempre juntos, numa das batalhas Castor é morto. Pólux, atormentado, pede a Zeus que devolva ao irmão e amigo a sua vida.
Seu pedido é parcialmente aceito: os dois passaram a dividir a imortalidade de Pólux - seis meses no Olimpo, e seis meses no Hades, porém nunca ao mesmo tempo - de forma que jamais tornaram a se encontrar...
Entre outras, está também a amizade de Orestes e Pílades - que se evidencia no episódio em que, tendo este ido a Táurida, um costume bárbaro impunha sacrificar à deusa Artemis qualquer estrangeiro que visitasse a terra. A sacerdotisa Ifigênia teria dito que aceitava a morte de apenas um. E os dois amigos debateram, um oferecendo a vida pelo outro...
Se estas duas histórias da mitologia deixam explícitas a afeição mútua e a capacidade de auto-sacrifício, a narrativa bíblica sobre Noemi e sua nora Rute delineia-se outra virtude indissociável da amizade: a lealdade.
Rute permaneceu ao lado de Noemi em um dos poucos episódios onde se revelam os verdadeiros amigos: Noemi, desanimada com a morte dos filhos, com a pobreza e com a fome na região onde havia morado por anos, retorna à Israel na companhia da nora viúva que se recusou a abandoná-la.
Na narrativa, a declaração feita por Rute à Noemi é antológica: “Não me instes para que te deixe e me afaste de ti; porque, aonde quer que pousares à noite, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus.”
Porém, apesar de encontrarmos as características positivas da amizade - como a afeição mútua, a capacidade de auto-sacrifício e a lealdade - também é possível perceber, com a passagem dos anos, àquelas desagradáveis - à que Simon classificou como abuso.
De forma interessante, em relação à sua longa parceria com Art Garfunkel, depois desfeita, o músico Paul Simon disse: "Num sentido profundo, eu não gosto dele. E penso que ele também não gosta muito de mim. Fomos parceiros por muitos anos. Numa amizade assim, a sensação de familiaridade corre paralela à sensação de abuso".
Amigos abusam uns dos outros?
Num mundo perfeito, composto de indivíduos perfeitos, não. Só que não vivemos num mundo perfeito.
O abuso - a presença de atitudes abusadas, aquelas que esperam em excesso da amizade, seja através do desrespeito de um amigo por outro, seja através da exigência de algo constrangedor de um pelo outro - o que pode incluir atos ilegais ou moralmente questionáveis - mais cedo ou mais tarde surge em qualquer relação de amizade; pois embora nobre, a amizade brota entre criaturas imperfeitas.
E assim como pode esfriar ou desfazer um longo relacionamento, o abuso pode impedir que a amizade nasça entre duas pessoas.
Numa entrevista, John Lennon disse não saber definir o que era um amigo. Porém, mencionou uma pré-condição para o surgimento da amizade: que o amigo não fosse alguém que pudesse necessitar de nada vindo dele. Que não pudesse explorá-lo, financeira ou socialmente.
Concordo!
E o que dizer da amizade entre homens e mulheres? A relação amitié amoureuse - amizade mesclada com amor - tornaria impossível a amizade entre estes?
Há quem prefira tratar da amizade entre homens e mulheres como uma etapa inicial da relação amorosa.
Para estes, um homem e uma mulher que demonstram um pelo outro as características já apontadas - afeto mútuo, capacidade de auto-sacrifício, lealdade - estariam no caminho certo para um relacionamento de amor amadurecido, ao contrário daqueles casais que parecem reunidos tão somente pela paixão.
É uma tese romântica, certo; mas também preconceituosa, já que, segundo esta, não seria então possível amizade autêntica, que permanecesse amizade, valiosa por si mesma, entre homens e mulheres.
Particularmente, não acho que a amizade seja uma das etapas para a consolidação de um amor. Acredito mais na paixão que se transforma depois em amizade eterna, isto é, caso exista vontade de ambas as partes - porque a grande maioria das paixões dura o tempo exato de uma vela.
Gosto de pensar que a amizade exista pura e simplesmente pela amizade. Ou seja, não é necessário igualdade, claro que por mais diferentes que sejam as pessoas haverá pontos em comum.
Creio que o negócio é todo um processo. As pessoas, se diferentes, vão se tornando mais e mais iguais; amizades muito grandes não permitem dissociar um do outro. Porém, tudo acaba nessa vida; e os dois acabam se separando.
Talvez pela igualdade, pois o que é igual não traz mais novidade, e sem novidade as relações param. Não há conflito, e, diz Krishnamurti, sem conflito, todo relacionamento morre.
O certo é, ainda que em conflito – sim, em conflito! – a amizade, na sua mais bela acepção, pode crescer e desenvolver-se.
Somente quando se esquece e/ou se negligencia este elemento crucial, expondo-se ao risco de misturar à amizade o egoísmo, o desejo de posse, a dissimulação e a impaciência - todos estes sim, definitivamente, inimigos mortais da verdadeira amizade - esta deixará de ser genuína.

2 comentários:

  1. Lindo este texto...
    Amizade verdadeira...essa é rara, e feliz aquele que pode dizer:Tenho um amigo e eu o amo!
    Este seu texto me fez pensar em todos os meus amigos, os que estão por perto e os distantes.

    XXX *_* XXX

    Deixo pra vc:

    Para a pergunta: "O que um amigo significa?
    Uma resposta: "Uma única alma que habita dois corpos"
    (Aristóteles)

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  2. Amizade verdadeira acredito que seja aquela que não veja no outro seus próprios interesses e que resiste apesar do "abuso" ou da distância e mesmo com todas as diferenças.

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