A obra do escritor tcheco Franz Kafka é tão difundida, e já foi tão dissecada, que dificilmente alguém pega para ler um romance seu sem tomar conhecimento de muito do que já foi dito a respeito.
De Freud a Hannah Arendt, vários pensadores tiveram suas idéias identificadas dentro do peculiar mundo kafkiano, e eu já conhecia algumas dessas interpretações.
Foi portanto com uma intrigante sensação de "já sei o que vou encontrar pela frente" que li O Processo e, posteriormente, A Metamorfose.
No entanto, o principal atrativo do romance estava numa característica sua que ninguém havia mencionado: sua capacidade de transmitir ao leitor o espírito da história não apenas através de pensamentos, mas também de sensações.
A normalidade bucólica da vida de Josef K. pode ser sentida nos primeiros trechos, quando o mesmo não perde a calma mesmo tendo seu quarto revistado por dois estranhos. Toma café, conversa com a senhoria, até flerta com uma vizinha, como se o nebuloso processo do qual é réu nem de longe o tocasse.
Após a primeira visita ao tribunal, o mundo asfixiante daquele tribunal tão hermético e singular vai progressivamente dominando-o, até a queda final, absorvendo todos os seus pensamentos e se instalando em todas as instâncias de sua vida.
Se nos primeiros capítulos são mencionadas relações dele com a senhoria, a vizinha, uma namorada, um amigo promotor, todo esse mundo do qual fazia parte antes do processo desaparece da metade para a frente. E o leitor, paralelamente, sente o amplexo progressivo dessa serpente, que constrange e sufoca progressivamente tanto o protagonista quando o espectador de seu drama.
É impossível não se sentir sufocado a cada corredor estreito, acada saleta escura, a cada reentrância legal em que se enreda Josef, que quanto mais luta para escapar, mais e mais se complica, como a presa que se enreda na teia à medida que se debate com mais e mais ímpeto, enquanto a aranha observa, calma, apenas aguardando o momento de devorá-la.
E tudo se torna ainda mais assustador quando percebemos que não apenas K. é a mosca, mas também nós, os leitores, sentimos as fibras da teia nos apertarem mais e mais, e podemos senti-la tremular enquanto a aranha se aproxima lentamente para tomar o que lhe é de direito.
Aqui fazemos menção à outra obra em análise, A Metamorfose, que possui exatamente a mesma índole: oprimir progressivamente o leitor, fazendo-o sentir-se como Gregor Samsa, mas aqui a perspectiva é um pouco distinta.
Em O Processo, vemos Josef K. perdendo progressivamente sua vida pessoal para ser completamente absorvido pelo drama que vive. Em A Metamorfose, a narrativa começa com a desgraça já consumada. Enquanto K. vê sua vida se perdendo como quem vê a água descer pelo ralo, Gregor contempla aquilo que já perdeu. Embora houvesse a possibilidade de voltar ao normal da mesma forma bizarra e inexplicável como se metamorfoseou, em nenhum momento se retrata essa esperança.
Sua luta, que dura cem páginas, é apenas para continuar a sobreviver naquela situação horrenda, até que finalmente ele, assim como Josef K., se entrega, após tanta luta, com serenidade e sem resistência no momento final, àquela circunstância que se impôs invencível diante dele.
Josef K. e Gregor Samsa, como já mencionado, foram transformados em ícones tanto do complexo de Édipo freudiano (bem como Kafka, cuja relação conflituosa com o pai já rendeu muita psicanálise) como da irracionalidade tirânica do totalitarismo (não há como não comparar o processo movido contra Josef com os famosos "Processos de Moscou").
Não discordo de tais abordagens, mas para mim o que torna Kafka soberbo é a sua habilidade em jogar o leitor na mesma espiral de desespero na qual envolve seus personagens. Se você não sente um aperto na garganta durante as visitas de K.aos órgãos do tribunal ou no parágrafo de sete páginas no qual são expostas as nuances do processo, nem ao imaginar o quarto fechado, escuro e poeirento no qual Gregor rasteja sua condição miserável, Kafka será para você apenas um autor hermético e chato. O que é uma pena, mas...
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