A história da literatura está repleta de episódios de cegueira crítica quanto à própria obra ou quanto a de outros colegas de Letras.
O caso de Franz Kafka é provavelmente o mais conhecido: ele nomeou seu amigo, Max Brod, como executor testamentário e ordenou-lhe que queimasse todos os seus escritos.
... Felizmente Brod não o obedeceu, ou nunca leríamos O Processo ou o emaranhado - também incompleto - que é América, cujo primeiro capítulo fôra o único fragmento do romance publicado por Kafka - A Metamorfose foi outra obra sua publicada em vida.
A propósito de Henry James, a cegueira crítica sobre si talvez seja a menos divulgada. Washington Square, uma de suas novelas de maior ironia amarga, com um estudo feminino de primeira linha - e um desfecho de fina literatura, foi sempre por ele considerada um trabalho medíocre, "superficial", sem todas as "infra" e "entre" leituras de que James tanto gostava e nas quais se esmerava.
... Washington Square foi mais tarde transposta para o teatro, A Herdeira, e levada ao cinema nos anos de 1950: The Heiress - no Brasil, chamou-se Tarde Demais, com Olivia De Havilland e Montgomery Clift, sempre com boa acolhida de público e de crítica. Cegueira, cegueira...
Outro: anos e anos atrás, numa entrevista à Ziraldo, o poeta João Cabral de Melo Neto declarou não ver todo esse valor - afirmado pelo próprio Ziraldo - em Morte e Vida Severina, o seu poema longo mais celebrado. Julgava que "reescrevera-o muito pouco".
Há também os casos de cegueira quanto ao valor da obra alheia. Quantos desastres...
André Gide não percebeu a grandeza de Marcel Proust; tendo recusado a primeira parte dos originais daquilo que se tornaria o magistral Em Busca do Tempo Perdido - consta que Gide mais tarde reconheceu seu erro.
Virginia Woolf leu - ou tentou ler - Ulisses, de James Joyce, e considerou-o "vulgar, mal escrito". Ela nunca deixou de ser - apesar de supor o contrário às vezes - uma "aristocrata literária", e jamais poderia ver com bons olhos um romance que, mal se inicia, coloca sua personagem às voltas com problemas de constipação de ventre. Muito "vulgar", para ela...
Ernest Hemingway teria dito que Fiódor Dostoiévski escrevia mal; se isto é verdade?! Não morro de amores por Hemingway, ao contrário, porém declarar uma heresia destas parece-me demais até para ele...
... Enfim, quando comecei a ler o pequeno estudo sobre Gustave Flaubert escrito por Henry James, e li este dizendo que Bouvard e Pécuchet não era uma grande obra do romancista francês, tratando-a quase que como um "engano", quando é justo este romance inacabado que me fez admirar Flaubert - e não o festejado Madame Bovary, tive de admitir que até os mestres como Henry James podem errar.
Num artigo seu de quase 20 anos atrás, Joyce Carol Oates chamou os escritores profissionais de "os piores críticos do mundo"; é verdade que, nele, ela só abordou a incapacidade de autocrítica da categoria. Contudo, a cegueira quanto ao valor da obra alheia, dependendo das circunstâncias, pode gerar grande mal. André Gide, como editor, vetou Proust; felizmente este último encontrou editores depois. E se não tivesse achado?!
Para contrabalançar - e animar - existe a história inversa: talentos solitários, desconhecidos, desacreditados, nos quais alguém - outro escritor - acreditou. É sabido o apoio que Ezra Pound deu a James Joyce e T.S. Eliot; o elogio do já consagrado Ralph Waldo Emerson à obra Folhas de Relva, do então desconhecido Walt Whitman. Ou a carta breve porém calorosa de Monteiro Lobato a Bernardo Élis pelo seu primeiro livro, Ermos e Gerais.
... E é bonito lembrar que o aparentemente sisudo Flaubert recebia as visitas de um jovem Guy de Maupassant, lendo seus textos e dando-lhe conselhos; escrevendo-lhe e considerando-o seu discípulo.
Escritores deveriam se esforçar em nome da prudência e em ouvirem vozes estranhas às deles; o nosso modo de escrever não é o único modo de escrever. E, acreditem os escritores, já existe conspiração demais neste mundo contra a literatura.
Continuo lendo tudo...
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